terça-feira, 19 de novembro de 2019

Clube da Luta: uma breve análise

Boa noite, esquizofrênicos de plantão!

Clube da Luta é um filme sobre um cara que tem insônia (Jack) e um cara que vende sabões (Tyler Durden). Eles dois participam de um grupo ultrassecreto de pessoas que regularmente combinam de se bater quase até a morte. Mas eu não deveria falar desse grupo, porque ele realmente é supersecreto. Está nas diretrizes dele. Bom, na verdade, estou a brincar, mas para a maioria das pessoas é apenas isso mesmo: um grupo de pessoas que adora se bater e vandalizar pra se opor a sociedade monótona e consumista.

O tema mais exposto no filme é o capitalismo consumista. Jack vive uma vida de tédio, trabalhando num trabalho que ele odeia, como a maioria das pessoas em nossa sociedade. Ele está sempre dopado, sem que consiga sentir nada. Essa é uma parte chave para a compreensão da ideia do filme. As pessoas que vivem na modernidade não conseguem sentir as coisas. Como diz Larossa, em “Linguagem e Educação Depois de Babel”, existem três obstáculos que impedem as pessoas de sentir, de se deixarem ser transpassadas pelas sensações: excesso de informação e excesso de opinião; falta de tempo; excesso de trabalho. O filme sugere justamente isso. Jack não está dopado pela insônia, ele está dopado pelo consumismo. Numa cena, ele aparece assistindo comerciais, num estado onde não está nem acordado nem dormindo.

A sociedade retratada no filme é uma máquina pensada para garantir a eficiência do sistema capitalista das frias e robóticas produções em massa. O filme mostra o lado negativo e desumano dessa “eficiência”. Tyler Durden afirma que você se torna escravo das coisas que você possui. Consumidores são indistinguíveis uns dos outros. A subjetividade é cada vez mais deixada de lado. É o que Canclini chama de “vozes anônimas”, em seu livro “Diferentes, desiguais e desconectados”. O narrador diz que tudo são cópias, nada é autêntico. Sendo assim, nós somos manipulados pela propaganda a achar que as coisas que consumimos são diferentes entre si, mas são todas iguais. Ter consciência disso faz a vida parecer vazia e sem finalidade a não ser a de servir como escravos do sistema.

Jack “acorda para a vida” depois de sofrer um acidente de carro. Ele decide “reagir” ao sistema, mas ele não poderia reagir como a maioria das pessoas faz. A maioria das pessoas escolhe as fugas que são determinadas pelo próprio sistema, como é o caso da bebida, dos jogos, produtos para entretenimento, etc. É quando ele se muda para outro apartamento totalmente diferente do seu anterior, seguindo uma lógica oposta à de eficiência propagada pelo mercado. É nesse ambiente que Tyler, líder do Clube da Luta, vai o convencendo a lutar contra o consumismo e retomar sua identidade.

Ainda não falei do Clube da Luta em si. Tyler, o líder do clube, fala como se o capitalismo estivesse transformando os homens em mulheres, tornando-os dóceis e frágeis (perfil retratado no personagem Bob, que perde seus testículos e ganha men-boobs, devido a uma doença). O Clube da Luta funciona como uma espécie de escapismo para esses homens, que no dia a dia não podem exercer sua masculinidade. O Clube é uma alternativa de fuga que não é produzida pelo sistema vigente. Só que, com o tempo, O Clube passa a replicar a sociedade consumista. A masculinidade pregada por ele é como se fosse um produto como qualquer outro. Tudo contra o que Tyler se rebelava, ele terminou reproduzindo: os homens do clube se tornaram cópias uns dos outros, até perder os próprios nomes e ameaçar os testículos uns dos outros. Surge assim o Projeto Mayhem, que tem como ambição perseguir políticos, corporativistas, e o sistema vigente em geral. Assim, o Clube da Luta, que antes parecia inofensivo e inocente apesar da violência, torna-se algo mais sistematizado e perigoso, tão ruim e supressor quanto o próprio capitalismo ao qual eles estavam se opondo.

No fim das contas, Tyler é um alter ego do Jack. O arco inicial retrata uma realidade capitalista, já o posterior retrata uma realidade fascista. Ambas semelhantes. E essa acredito que seja a crítica tecida pelo filme. Tanto para o capitalismo quanto para o fascismo, o ser humano é apenas uma estatística, um número, uma pequena parte anônima de um grande todo, onde pessoas são vistas como objetos e não como sujeitos. A questão do alter ego entra pra reforçar essa ideia de que o capitalismo e o fascismo são a mesma coisa, com “rostos” diferentes.

                               Resultado de imagem para fight club jack"
Jack... ou Tyler?

domingo, 4 de agosto de 2019

Reflexões sobre a cultura

Bom dia, leitores.
Não existe uma definição única que seja capaz de abranger a cultura com todos os seus significados, mas existe uma definição - considerada por muitos um tanto vaga - da qual eu gosto muito: cultura é tudo aquilo, que, graças à linguagem, passa de geração para geração. É a soma do conhecimento humano. Mais que isso: é a soma das sensibilidades, das identidades, das práticas e das representações. Além disso, ela não é só uma: ela é plural, múltipla e diversa. Como se não bastasse, ainda existem inúmeras formas de compreender a cultura, que diferem completamente da minha.
Durante muito tempo, a própria História abordava a cultura de maneira bastante limitada, tendo como enfoque a cultura intelectual, abordando exclusivamente manifestações literárias, tratados filosóficos, obras de arte… enfim, tudo aquilo classificável como “alta cultura” - entendendo a cultura como se ela fosse produzida por alguns, mas não por outros. O que acontece é que não havia a percepção da cultura como algo plural, como processo comunicativo. Ela era entendida e pensada somente a partir dos “bens culturais”, produzidos por uma classe economicamente dominante. 
Nos dias de hoje, a História Cultural compreende que a formação da cultura não se faz exclusivamente pela produção, mas também pela recepção. Cultura é produção, recepção, atividade, "passividade"... interlocução. E mais importante: a cultura passa também a ser Vista de Baixo, muito graças às contribuições de Edward Thompson com seu “History From Below”, que trouxe essa nova atitude, que abriu o horizonte para as produções historiográficas. 
Tudo isso, para finalmente concluirmos que a cultura é tudo aquilo que é fruto das práticas e representações, e como diz Le Goff: “o campo das representações engloba todas e quaisquer traduções mentais de uma realidade exterior percebida” (1985).

Arte rupestre na caverna Cueva de Las Manos, na Argentina



terça-feira, 16 de abril de 2019

Reflexões sobre o pensamento

O mundo apresenta estruturas que tornam-se cada vez mais complexas e confusas. A pós-modernidade exige dos pensadores que eles centrem seu foco cada vez mais em assuntos super específicos. Contudo, como efeito colateral deste movimento, pensadores estão ficando totalmente presos em suas pequenas áreas, esquecendo assim que a interdisciplinaridade é um caminho imprescindível para que se entenda qualquer assunto à fundo, pois as categorias específicas do conhecimento não existem separadamente no mundo real. Não se pode estudar História Cultural desconsiderando História Econômica, por exemplo. A economia depende da cultura e vice-versa. 

Interdisciplinaridade não significa que devamos expandir indeterminadamente nossa área de estudo, haja vista que, efetivamente, de nada adianta deter grandes quantidades de conhecimento desordenado. Por "desordenado", refiro-me a grupos de saberes que não interagem entre si. Portanto, o que se tem nesse caso é um conhecimento de pouco valor. Por ser insuficientemente aprofundado, sempre haverá alguém que saberá ou virá a saber mais sobre um dado assunto, sendo assim nula a contribuição intelectual daquele incapaz de aprofundar seu pensamento.

Hoje em dia, temos a compreensão de que não é humanamente possível, nem viável, dirigirmos nossos esforços na elaboração de um gigantesco calhamaço sobre uma História Geral do Brasil, ou qualquer outro tema desta mesma abrangência. Como diz Arthur Schopenhauer em seu texto "Do pensar por si", conhecimentos gerais têm muito menos valor do que um conhecimento específico que foi "cuidadosamente considerado". 

O ato de pensar cuidadosamente sobre o conhecimento envolve tanto a interdisciplinaridade, quanto a rebeldia e a coragem. Interdisciplinaridade, para que se tome conhecimento de todos os enfoques possíveis em relação ao assunto, que não deixa de ser específico. Rebeldia e coragem serão características necessárias para que nos apropriemos do conhecimento, transformando-o assim num saber. Devemos colocar à prova aquilo que lemos, pensar por nós mesmos, buscando manter em nossa mente o império do discernimento. Enquanto a autoridade da maioria das mentes na academia é delegada a um pensador x ou y, o verdadeiro pensador científico deve buscar ser a própria autoridade. O primeiro estará satisfeito em funcionar como um gravador, o segundo será aquele cuja voz será gravada e reproduzida. 

                                               Le Carceri d'Invenzione - Piranesi (1720-1778)